sábado, 16 de janeiro de 2016

Julgas e serás julgado

Você faria tatuagens com um tatuador sem tatuagem nem piercings?
Sim, não? 

A pergunta surgiu numa conversa que estava tendo dias atrás com uma moça que tem problemas de quelóide. Quelóide ou cicatriz hipertrófica é um problema em tatuagens e piercings, porque fica muito feio e estraga o desenho. Então, a pessoa que quiser ter e sofre deste problema precisa usar piercings e tattoos falsas. Mas isso causa uma espécie de repulsa em alternativos e demais interessados na arte, porque parece dar a entender que a pessoa tem medo de assumir as intervenções corporais. O assunto, aliás, não é novidade, aparece em vários fóruns de discussão (aqui e aqui, só para dar exemplos).

E aí veio a questão. Quem tem tendência a quelóide pode ser tatuador. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Mas você se tatuaria com quem não pode ter? E com quem simplesmente não tem?

É fato que nós, seres humanos, temos um mecanismo evolutivo que nos faz acostumar com o que considerado seguro e desejá-lo. Por que mesmo aqueles que não temem altura sentem um frio na barriga perante o perigo de cair? Porque é ancestral. Nos acostumamos de tal maneira a associar fatos com pessoas que não raciocinamos mais. 

Está vestindo branco? É médico.
Mas pode ser dentista. Pode ser fisioterapeuta. Pode ser pintor (muitos preferem usar branco, pois é mais fácil limpar com água sanitária depois). Pode ser praticante de religião afro ou espírita...

Está de terno? É advogado ou político.
Já teve ladrão usando terno e gravata para impressionar as vítimas, sabia?

E se você entrasse em um estúdio de tattoo e o artista não tivesse uma sequer? Você acreditaria em seu potencial? Ou julgaria, como tantos, que ele não é alternativo o suficiente, que não é bom o suficiente?

Se eu mostrasse a foto desta mulher e dissesse que ela entende de rock, você acreditaria?


Pois ela é nada mais, nada menos, que Gisele Maria Rocha, brasileira, muçulmana e toca guitarra pra caramba!!! Olha um vídeo dela:


Fico pensando na quantidade de pessoas que desistem de seus sonhos por um impedimento social. O tatuador com quelóides é apenas um exemplo. Ele é um artista, independente da cena ou não. E ser isolado por conta de uma obrigatoriedade social da cena é algo triste. Se ele usar tattoos falsas e piercings falsos, ele será menos que os outros? Se eu usar por problemas para furar, serei menos digna?

A cena alternativa dentro dela mesma sempre lutou por igualdade: de raça, de sexualidade, de condição social. O punk era punk, independente de ser negro ou branco. O gótico é gótico sendo homem ou mulher. O rockabilly é rockabilly, independente se veio da praia, do campo ou da cidade. 

E aí vejo aquela briga do "gótico tem que parecer um vampiro, pele cor de leite" e fico fula. Punk tem que se furar todo para ser respeitado. Fetichista pre-ci-sa usar saltos altíssimos. Não, não, não. Isso não é uma questão de manter o aspecto cultural da subcultura. É impor uma regra cega, segregadora. Exatamente a mesma coisa que a sociedade "normal" faz conosco todo dia.

Sempre lutamos por respeito ao indivíduo. Nossos avós vieram de gerações onde não havia respeito a vontade individual. Sonhos enterrados e frustrações eram o estopim de muita subcultura, a base da luta. E de repente estamos nós impondo condições para aceitar? Existe o "alternativo, mas não o suficiente"?

Sinceramente? Sou alternativa porque penso diferente. Não é tatuagem, não é piercing, não é tacha, renda ou rebite. Cansei de olhar no espelho e me perguntar se estava alternativa o suficiente. Agora penso "vou passar a mensagem que quero?". Mensagem de "não ligo para a podridão da sociedade, tenho coisas mais importantes a fazer. Tenho sonhos e vontades". 

Se uma pessoa que sonhou ser tatuadora, mas não pode ser por imposição social da cena, desistiu, então estamos regredindo.

4 comentários:

  1. Adorei sua reflexão.
    Eu sou o tipo de pessoa que é "chutada" de qualquer grupo.
    Sou diferente demais pra ser bem aceita entre pessoas "normais" e sou "normal" demais pra ser aceita pelos alternativos.
    Já me disseram que sequer sou alternativa por não ter uma estética ou vestimenta que se possa associar a alguma subcultura. Mas peraí, dá licença? Eu ser alternativa é uma coisa que eu tenho que me sentir, ou depende que outros olhem pra mim e me considerem? Eu hein.
    Mas e as mulheres alternativas que a grande maioria das pessoas têm como referência? Parecem mais que pegaram uma barbie, pintaram o cabelo e rabiscaram tatuagens.
    E como se não bastasse, estou no limbo da moda: gorda demais pra ser considerada magra, magra demais pra ser considerada plus size. Mas e as mulheres pluz size que temos como referência? Mesmo sendo gordas têm proporções normais e eu não tenho peitão, nem bundão, nem quadril largo.

    Pra todo lado que a gente corre tem padrão, tem uma estética que as pessoas tentam alcançar.
    "Alguém nos ajude Lázaro, a entender" hahaha. Foda viver.

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    1. Oi Cecília!
      É bem isso: pegaram a Barbie e rabiscaram. A raiz da subcultura passa batido, o pessoal cobra umas coisas esquisitas que para mim não fazem sentido algum.
      E foi bom vc lembrar deste padrão "peito e bunda" que até as plus size seguem em campanha publicitária. Não tem aquele ímpeto de abraçar todos os corpos, e assim tb é na estética alt, onde vc vê modelos magras, altas, no salto...quando veremos uma em cadeira de rodas? Albina? Oriental? Só vi uma representante da Queen of Darkness, e por isso respeito a marca. Foi um sopro, mas foi só ela que soprou.
      É foda mesmo.

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  2. Tá aí uma coisa que eu não me canso de pensar. Que raios fazem estas pessoas neste meio, poxa... eu fico indignada de imaginar que há pessoas que usam da cena alternativa para se promover e ficar pagando de fodão na internet, vivendo apenas de estética. Cadê o pensamento alternativo? Será mesmo que estas pessoas que se dizem alternativas conhecem realmente a origem das subculturas e o porquê de estar vestido de tal forma? Queria tanto que as pessoas se unissem sem esse elitismo/padrãozinho nojento. É... ultimamente tá foda.

    Meus dois últimos furos no nariz foram feitos por um piercer que não tinha nenhum piercing, jamais iria diminuí-lo por conta disso, mas infelizmente tem gente que é meio atrasada mesmo. Tá louco, esse mundo tá regredindo a cada dia que passa.

    Beijos!!!!

    madessy.blogspot.com.br

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    1. Bem isso Madaha! Disse um cara no fórum destes que citei: "tatuador sem tattoo é igual a dentista sem dentes". Oi? Precisa disso?
      Eu perco a paciência com esse negócio de "para ser X tem que vestir isso, passar isso na cara, falar disso e daquilo...". A pessoa que mais cobra é a que mais corre o risco de cair no mainstream, porque ela nunca está livre de verdade.
      Beijos!

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Adoro comentários e críticas construtivas!

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