sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Um conto triste

Ela olhava pela janela do carro, em silêncio.

"Ele não é mais o mesmo".
Tinha elevado a voz para ela de novo, sem motivo. Não prestava atenção quando falava, tirava sarro de suas ideias, não se lembrava dos compromissos que tinha firmado com ela.
Passava seus dias pensando. Saudosa de um tempo em que o que falava era ouvido e comentado, que a ajuda dele era espontânea e alegre, que ele alisava seu cabelo e mordia sua bochecha, brincando.
No começo achou que era problema na firma. Chegava em casa depois de 2 horas de ônibus, fazia comida, colocava a casa um pouco em ordem e sentava com ele para assistir alguma coisa. Quando finalmente podia falar de seu dia, ele falava do dia dele sem parar, virava para o lado e lhe deixava falando sozinha. Ele andava estressado? Não. Ele era assim.
"Apenas 5 minutos. De atenção. Apenas."
Nem isso mais. Ele virava os olhos para cima, entediado. Ou se irritava e dizia que precisava dar atenção a outra coisa, por que ela não resolvia logo aquela m***a? Por que ele ia querer saber de coisas que não foi ele que fez?
As roupas dela puídas, sem dinheiro nem para comprar uma calcinha nova. Ele tirando sarro dos buracos na lingerie, lhe chamando de balofa por gracejo, sem perceber que ela chorava escondida no banheiro.
"Chorei na frente dele. E ele nem percebeu."

Ele percebe o silêncio.
Dentro do carro, nota ela com os olhos vagantes, tristes. As rugas, que antes não eram visíveis por causa do sorriso, agora gritavam seu amargor. As mãos não estavam mais tão firmes. Os dentes, mal se via, fechados em uma boca que não falava mais.
"Ela não é mais a mesma".
Ela o irritava quando queria. Mal chegava em casa, ela despejava coisas do dia dela, que ele nem prestava atenção de propósito. Tinha outras coisas para pensar.
Saudoso de quando ela era apenas uma presença de fim de semana na sua vida, onde ele podia ser como quisesse durante a semana, sem se preocupar com outra pessoa, entupindo a casa de bagunça. Bagunça que ela dava atenção reclamando sem parar.
"Apenas 5 minutos. De atenção. Apenas."
Agora ela vivia em silêncio. Ouvia-a conversar com a mãe longas horas, e ficava feliz de não sobrar aquela coisa toda para ele.
E a falta de cuidado consigo mesma? Ele reclamou das calcinhas furadas e manchadas, da roupa apertada, do cabelo sem corte. Onde já se viu, engordar daquele jeito?
Ouviu ela chorar no banheiro.
"Chorei na frente dele. E ele nem percebeu.". Mentira, percebeu sim.

O vento anunciava a chuva eminente.
A deixaria no ponto de sempre, mesmo com a chuva. Ela que corresse.
Ele a deixaria no ponto de sempre, mesmo com a chuva. Ela que se molhasse.
A chuva caía torrencial, e ele parou no semáforo. Ela foi sair do carro, se atrapalhou com o cinto.
"Vai logo que não tenho o dia todo".
Ela o fitou com ódio, ódio que não se explica em palavras. Ele se assustou.
O telefone tocou o dia todo. Cansado e irritado, atendeu dizendo "Fala mulher desgraça, que merda que houve?"
Não era ela. Era outra mulher.
Tubulação de gás defeituosa.
Explosão.
Prédio desabando.
Pessoas feridas.
Enquanto ia para o hospital, prometia a todos os santos. Gritava para os anjos para pouparem sua mulher. Ia levá-la para jantar, ia presenteá-la com todas as rosas do mundo. Ia aliviar em casa seu trabalho. Ia beijar seu corpo, comprar roupas bonitas e pagar cabeleireiro. Ia decorar a casa para o Natal. Iam se casar. Iam ter filhos. Iam morrer juntos.
Morrer.
Pessoa falecida. Velório. Enterro. Choros. Coroas de flores.

Casa vazia. Silêncio. Recolhia os pertences dela. 
Ele não era mais o mesmo.
Uma foto de almoço com as amigas do trabalho. Todas com os maridos, ela sozinha. Quando tinha sido aquilo? Lembrava vagamente de dizer que não poderia ir, não queria perder o jogo final do campeonato.
Revistas de emagrecer, pilhas delas. Na capa de uma delas, escrito com a letra trêmula "Quero ser magra como ela".
Livros ensinando a reconstruir relacionamentos, a convencer maridos sobre filhos, a formar família feliz, a enlouquecer um homem na cama.
Queria ela ali na sua cama, para amá-la como nunca. 
Apenas 5 minutos. Dela. Apenas.
Tíquetes provando que ela comprava roupas para ele, mas nenhuma para si. Exceto uma lingerie bonita, ainda com a etiqueta. Nunca usada. As roupas dela, puídas, nem poderiam ser doadas.
Fotos de momentos que ele não estava junto dela: batizados, casamentos. Listas de compras para a casa de futuro deles. 
E num caderno, poesias tristes dizendo que ela queria morrer. "Chorei na frente dele. E ele nem percebeu."
Agora quem chorava era ele. Porque finalmente tinha percebido.

5 comentários:

  1. Aimmm Vi , porque você gosta de me fazer chorar ,de verdade ,amiga malvada hahaha , no meu caso ele me via sofrer , ele fazia questão que eu sofresse ,meu choro dava prazer a ele , e ele me matou ,e a cada dia me reconstruo .............

    http://jessicavenenoofficial.blogspot.com.br/

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  2. Ah flor não queria saber que vc chorou.
    Se consigo escrever estas coisas, é porque já passei por elas. Também morri por dentro e estou cada dia me reconstruindo.
    Eu te entendo.
    Beijos!

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    1. Putz o teclado comeu o que digitei. Era "Ah flor não queria saber que vc chorou, choro junto."
      :p

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  3. As pessoas só sentem falta quando perdem, é uma merda isso.
    Me emocionei com o texto. Vivo minha vida pensando sobre isso, no tempo. Como ele passa e as coisas que perdemos por achar que amanhã se repetirá, mas nem sempre é assim.
    www.rockeiraevaidosa.com

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    Respostas
    1. Tem uma poesia que gosto muito que diz
      "O tempo é um fio fino bastante frágil.
      Um fio fino que à toa escapa.
      O tempo é um fio.
      Tecei! Tecei!
      Rendas de bilro com gentileza.
      Com mais empenho franças espessas.
      Malhas e redes com mais astúcia.
      O tempo é um fio que vale muito.
      Franças espessas carregam frutos.
      Malhas e redes apanham peixes.
      O tempo é um fio por entre os dedos.
      Escapa o fio, perdeu-se o tempo
      Lá vai o tempo
      como um farrapo
      jogado à toa!
      Mas ainda é tempo!
      Soltai os potros aos quatro ventos,
      mandai os servos de um pólo ao outro,
      vencei escarpas, dormi nas moitas,
      voltai com tempo que já se foi... (Henriqueta Lisboa)

      :)

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Adoro comentários e críticas construtivas!

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